segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Rotina


[Woman Reading, 1916 -Max Weber]


No começo da semana que passou, segunda-feira chuvosa, fui ao médico. Não o meu médico habitual mas um outro, aconselhado por pessoa gentil e amiga. Era, afinal, uma médica. A rondar os sessenta anos de idade, muito atenciosa, profissional irrepreensível. Deitado sobre a marquesa, enquanto me auscultava ia falando. Fazia-me perguntas, queria saber coisas, buscava pistas. E no  decorrer do exame vários foram os momentos em que viajei até tempos remotos de mim mesmo. Alguma vez esteve hospitalizado? Perante o meu silêncio, insistia. Doenças na infância, na adolescência?...

E durante a consulta senti que a médica, nos seus cuidados e na forma doce como me falava, me trouxera a minha avó de volta. Ou a mim de volta a ela. Tive saudades, apeteceu-me deitar a minha cabeça no seu regaço e adormecer sobre as memórias que retenho do temperamento dócil da mãe da minha mãe. No final, um aperto de mão caloroso, uma troca amável de sorrisos e saí para a rua. Indiferente à tempestade, ergui as faces para o céu carregado e refresquei-me na água da chuva que, conjuntamente com o frio que faz, teima em fazer também deste um Inverno dos antigos.



domingo, 30 de janeiro de 2011

Biutiful






O elogio da dor

«Biutiful» é, antes de mais, a história de um homem que vive à beira do precipício. O mundo de Uxbal (Javier Bardem) é pesado, feio, doloroso e o novo filme de Alejandro González Iñarritu torna-se desse modo desaconselhável não pela sua incontestável qualidade cinematográfica mas porque a história que nos conta é de tal forma um hino à dor, à agonia, que facilmente leva o espectador ao desespero e ao cansaço pelo negativismo visceral ensaiado nas maleitas da natureza humana inseridas numa sociedade desigual que gera a mais repugnante miséria.
Uxbal, um Bardem inexcedível física e emocionalmente numa entrega fantástica ao perfil penoso da sua personagem, é um homem que perdeu a mãe quando criança e não chegou sequer a conhecer o pai. Tem ainda uma ex-mulher massagista, prostituta, alcoólica e bipolar incapaz de tomar conta dos dois pequenos filhos de ambos já que a ele, Uxbal, lhe resta muito pouco tempo de vida por sofrer de uma grave doença cancerosa. Uxbal, um estranho na sua própria terra, ganha a vida entre a máfia chinesa e os africanos ilegais que traficam todo o tipo de artigos nas ruas de Barcelona. Acrescente-se também que a Barcelona de Iñárritu é pobre e suja, dificilmente reconhecível e, inicialmente, pode até ser confundida com qualquer cidade oriental ou sul-americana no pior que estas grandes urbes com população em excesso podem apresentar.
E a verdade é que o filme vive da omnipresença de Javier Bardem, não apenas porque segue quase em exclusivo a sua personagem mas por razão da fantástica prestação do melhor actor espanhol da actualidade. Daqui se depreende que o realizador mexicano abandonou as histórias em mosaico e as montagens vertiginosas, seguindo uma linha temporal única e bem definida. Apesar disso, não se tornou mais fácil para o espectador seguir uma narrativa que, como se pode perceber, faz da dor uma única linha de raciocínio apresentando-a, à dor, em sentido literal e metafórico, ao centro, à esquerda e à direita, aqui, ali e acolá. E se numa pretensa busca de redenção para os seus pecados Uxbal demonstra uma humanidade admirável para quem busca o sustento na exploração do seu semelhante tendo ainda uma relação afectiva muito forte com os seus dois filhos, a verdade é que por seu lado o mundo de Alejandro González Iñárritu precisa rapidamente de mostrar alguma crença no ser humano. Sob pena dos seus espectadores se cansarem de constantemente serem vergastados emocionalmente pelo seu cinema.

«Biutiful», de Alejandro González Iñárritu, com Javier Bardem




quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O sonho



[Girl in Tree, Brook Slane]






Uma mulher ainda muito jovem caminha paulatinamente com uma pasta dependurada numa das mãos. É linda, reparo, mas reparo também que encerra em si uma expressão triste. O sonho tudo permite e leio-lhe a mente. O tempo recua para tempos felizes, até à universidade, aos sorrisos rasgados, a ideais profundos no horizonte próximo, para todo um mundo que não dispensa o mais diminuto contributo para se converter num lugar melhor para se viver. O tempo avança, acontece a difícil entrada no mundo do trabalho, a mulher jovem sofre o choque da inevitável cedência ao poder instalado, verga-se à impossibilidade de ser ela mesma. Quebrou-se o encanto, as vozes tornam-se intolerantes e ruidosas, o silêncio é amargo e, lá dentro, dentro de si, luta contra um ressentimento apaixonado que lhe arruína os dias, lhe perturba as noites. A alegria confunde-se na tristeza, a fadiga acumula-se.

Sonho, sei que estou a sonhar. Mas continuo a olhar para a mulher jovem, o dia é o de hoje. Fechada numa sala faz o que tanto desejou, trabalha no que gosta, ajuda uma menina a perceber o mundo que a rodeia, procura não deixar que os problemas próprios de uma sociedade imperfeita como a nossa condicionem a formação da sua personalidade. Uma família graciosa composta por três mulheres, um pai que aguarda a liberdade atrás das grades. A menina entoa um pequeno cântico, está de joelhos numa cadeira, os cotovelos pequeninos apoiados sobre o tampo da mesa, uma folha em branco. E desenha. No cimo do desenho escreve a dedicatória.

«É para ti, querida professora.»

E no final um bracinho estendido, pequeno, uma mão aberta, pequena, um gesto grande, enorme, uma bolachinha para a mulher jovem. Uma bolachinha sobre a palma da mão. A mulher morde os lábios para se conter e solta um sorriso trémulo, nervoso. No final do dia de trabalho a ironia subtil, o reconhecimento do talento vindo de onde menos se espera, vindo da doce menina, da sua inteligência pura, do lado mais instintivo do seu pequeno ser. Já na rua cede à imobilidade e ao silêncio numa rua frenética de carros a subirem a rua, de carros a descerem a rua, das gentes ansiosas por chegar às suas casas. Sente-se incapaz de um movimento. Mas sim, valeu a pena acreditar. Sim, vale sempre a pena sonhar.


Poliglota






Há uns anos fiz uma viagem a um país do oriente com pessoas oriundas de vários países da Europa. A visita durou sete dias e para além do tradicional inglês comuniquei em francês, alemão, espanhol e italiano. Já quase no final da viagem, quando em pleno aeroporto de Heathrow embarcava sozinho na ligação para Lisboa, recordei-me que não falava correctamente algumas das línguas que citei atrás. Foi então que me dei conta que passara sete dias a trucidar várias línguas europeias. Aconcheguei-me no lugar que o meu bilhete indicava numa janela a dar para a asa direita do avião e fechei os olhos a tentar adormecer a minha culpa.


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Hereafter - Outra Vida


 


Ensaio sobre a vida

«Hereafter – Outra Vida» é a confirmação do octogenário Clint Eastwood como um dos maiores realizadores do nosso tempo. Paralelamente, ao espectador espera-o um filme que lhe promete falar da morte mas que opta por dissertar sobre a vida. Uma história, ou um mosaico de histórias que se cruzam na estranha capacidade sensorial de um homem, que se preocupa mais com o indivíduo e com os seus mais profundos dilemas que com a sociedade em que este possa estar inserido. E nesta espécie de conspiração do silêncio que une as personagens numa narrativa sóbria mas que nos oferece uma espantosa recriação do maremoto ocorrido no Índico há um par de anos atrás, emerge um actor extraordinário numa interpretação paradoxalmente humilde e cintilante pela sua extrema sensibilidade: Matt Damon. Imperdível.

«Hereafter – Outra Vida», de Clint Eastwood


Tron: O Legado




Império dos sentidos

Poder-se-á acusar «Tron – O Legado» de alguma pobreza argumental. E quem o fizer tem toda a razão. No entanto, teme-se que essa preocupação possa fazer com que se perca aquilo que as virtudes da tecnologia permitiram no filme em que Jeff Bridges desaparece durante vinte anos sugado para um programa de computador: a sua impressionante originalidade visual. Porque «Tron» não é um filme qualquer. «Tron» é pura alucinação digital, é uma grandessíssima bebedeira onde o gozo e a alegria descambam numa maravilhosa noite de sono e num dia seguinte sem o menor indício de ressaca. «Tron» é, em suma, um fascínio para os olhos, é delírio, ilusão, é desvario. E é sentir para crer.

«Tron: O Legado», de Joseph Kosinski

O Turista




Presunção e água benta…

Sim, «O Turista» tem Angelina Jolie e Johnny Depp nos principais papéis. E tem Veneza, essa cidade eternamente romântica de gôndolas e canais, palácios e pontes. No entanto, o filme de Florian Henckel von Donnersmarck (!) é um completo vazio de ideias numa catadupa de clichés narrativos e visuais. Para além de dispensável e fútil, «O Turista» mostra ainda uma actriz incapaz de cumprir os mínimos que justifiquem o seu invejável estatuto e um actor a perder-se cada vez mais na caricatura de si mesmo. Enfim, uma perda de tempo.




Stone – Ninguém é Inocente





A culpa

Um criminoso cumpre pena e procura alcançar a liberdade condicional. O agente encarregue da sua avaliação está igualmente na recta final de um percurso profissional incólume mas a terminar com a idade da reforma. Entre estes homens existem duas mulheres. Uma, a do marginal, usa-se de todos os meios para corromper o agente e com isso conseguir a liberdade do marido. A outra, a do agente da lei, vive uma existência oca e abafada pelo dever de acompanhar o homem com quem casou mas de quem desde há muito se sente afectivamente desligada.

«Stone – Ninguém é Inocente» é, deste modo, um filme que se movimenta na exploração da culpa de gente perdida algures entre a sua essência e aquilo que a sociedade lhe exige. E enquanto uns seguem religiosamente o que os bons costumes lhes ditam e cumprem a sua pena em silêncio, outros divergem e acabam igualmente condenados pelo extravio a que se atreveram. Mas, lamentavelmente, o filme perde-se nas suas excessivas exigências filosóficas já que coloca questões para as quais não encontra respostas. E Milla Jovovich, Edward Norton e Robert de Niro acabam também eles perdidos numa encruzilhada de vidas demasiadamente desinteressantes para que pudessem suscitar no espectador a procura por si mesmo das respostas que o filme não lhe oferece. Mas é pena.

«Stone – Ninguém é Inocente», de  John Curran




terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Homens bons





[Dalai Lama versus Mr. Chance]

 


O Dalai Lama lidera uma lista das personagens mais influentes do mundo. Sorrio e relembro a espantosa tranquilidade que me invadiu aquando de uma entrevista que o líder espiritual tibetano deu a um canal de televisão. Não sei porquê, mas o Dalai Lama faz-me lembrar uma personagem mítica do cinema, Mr. Chance. Este, um simples jardineiro cujo mundo se resumia à televisão e à mansão em que trabalhou durante anos e que repentinamente se vê enredado numa teia política em que é visto como o homem das novas e revolucionárias ideias que irão metamorfosear o mundo para bem melhor. Brilhantemente protagonizado por Peter Sellers  - o filme é «Bem-vindo, Mr. Chance» (1979) -  há na confusão criada e na peculiar personagem de Mr. Chance uma sabedoria inocente que o Dalai Lama parece muitas vezes encarnar dado o seu franco sentido de humor e a admirável humildade com que se dá aos outros. Como no visionamento do filme e sempre que ouço o Dalai Lama, há momentos em que quase sou obrigado a conter a emoção. E salvaguardadas as devidas distâncias, o mundo precisava de mais gente assim. De mais homens como o Dalai Lama e como Mr. Chance.
 
 
 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Os políticos que se rejeitam como políticos




Por que será que alguns políticos teimam em dizer mal dos políticos como se ao afirmarem-no não estivessem a fazer política e eles mesmos não fossem parte integrante da classe? Por outro lado, que leva a que outros políticos cuja estratégia anterior levou ao seu próprio enterro público mas que renascem das cinzas a cada novo escrutínio insistam em se afirmar portadores de planos novos e fundamentais que irão fazer do nosso um mundo melhor como se já antes não o tivessem tornado bem pior? Se o primeiro caso me intriga, neste segundo caso recordo-me sempre da velha história do vivo que só o era porque alguém se esquecera de o avisar da sua morte.


sábado, 15 de janeiro de 2011

O ADVERSÁRIO




   A verdade escondida

   
      Sorria tristemente e o olhar, tímido, parecia perdido algures no horizonte. Mas para a mulher, para os filhos, para os pais, era o marido atencioso, o pai protector, o filho dedicado. Era também o médico brilhante com um cargo de investigador na OMS. Um dia, a tranquilidade daria lugar à tragédia. Afinal, podem revelar-se devastadores os contornos ligados às mais recônditas fraquezas do ser humano.
      

      Se existem situações limite em que a verdade ultrapassa claramente a ficção, uma dessas situações consubstancia-se, claramente, na história em que se baseou o livro, da autoria de Emmanuel Carrère, que a realizadora Nicole Garcia adaptou neste filme ao cinema. O filme relata de modo bastante equilibrado em função do acto repulsivo a que alude, a vivência secretamente errante de Jean-Marc Faure (Daniel Auteil), cuja família acreditava que fosse médico a trabalhar como investigador na OMS. Mas a vida de Jean-Marc estava muito longe dessa realidade por si criada mas completamente inexistente. Uma realidade que nunca passara da simples virtualidade. Depois de um erro cometido ainda enquanto estudante de medicina, Jean-Marc revela-se incapaz de lidar com a verdade e mente durante dezoito anos à sua família e amigos. Na extrema e pantanosa experiência humana em que se vai atolando, o falso médico passa os dias em áreas de serviço das auto-estradas, embrenha-se em estradas secundárias dos bosques da região onde vive e abandona-se em quartos de hotel. É uma errância viciosa mantida materialmente pela impostura e marcada psicologicamente pela solidão. Nicole Garcia deixou que a sua câmara captasse o lado mais humano do drama de um homem cobarde que temia as reacções previstas dos que o ladeavam se colocados em confronto com os seus actos falhados, e é atroz o impacto em nós da ambiência silenciosa do seu filme. Os movimentos lentos da câmara e o percurso grave do protagonista, funcionam como se em prelúdio para a anunciada tragédia.
     
      Jean-Marc Faure é o nome ficcionado de Jean-Claude Romand, o homem que entrou numa espiral de degradação psicológica que o levou a um acto tresloucado mas cometido com uma aterradora serenidade. Apesar da realização jamais pretender especular sobre motivações ou encenar explicações psicológicas que levem a um entendimento mais objectivo do espectador perante a insanidade da trama a que assiste, tornam-se ainda assim evidentes os diferentes estágios que levam à alienação final. Faure traçara para si uma exigência terrível com o prolongamento da sua mentira. Para aquele homem, não havia sonhos ou metas a atingir e daí a tristeza que é latente no seu rosto, o desencantamento que transparece no seu olhar. E aquelas pequenas felicidades do dia-a-dia tornaram-se para si irrelevantes, inconsequentes. Daniel Auteil, que ainda não há muito víramos como Marquês de Sade («Sade», 2000), é perfeito no papel de um homem oprimido pela sua própria acção, preso às teias da rede por si tecida. Auteil, como Faure, deambula pela tela cingido rigorosamente à fatalidade da sua personagem. São devastadoras as expressões físicas do actor corporizando um homem potencialmente luminoso mas que se apagava em defesa da sua mentira. No meio do ardil, na gravidade da tragédia, avulta do filme uma espécie de poesia do desespero. E se méritos podem ser atribuídos a Nicole Garcia em virtude da abordagem do seu cinema à história, é de inteira justiça realçar-se o fabuloso trabalho de interpretação de Daniel Auteil. O actor “deu-se” à personagem como se sofresse verdadeiramente com o seu calvário e retira de um sentimento tão negativo quanto a repulsa, com a sua interpretação, um tão estranho quanto inesperado fascínio.
     
      Uma das virtudes do filme reside na percepção que houve de que este se baseava numa história passada na realidade e em tempos muito recentes, em 1993. Esse facto, aliado ao livro de Carrère, ameaçava retirar qualquer tipo e hipótese de surpresa ao filme. Esse pormenor foi ultrapassado socorrendo-se Nicole Garcia em opções conceptuais algo arrojadas, dada a muito própria estrutura da narrativa no que à história se refere. O arrojo, dizia, consistiu no modo como o filme foi montado. Ao mesmo tempo que os contornos dramáticos da trama vão sendo apresentados ao espectador, Luc (François Cluzet), o principal amigo de Jean-Marc, e Marianne (Emmanuelle Devos), que foi sua amante, vão sendo interrogados na polícia sobre o amigo e antigo amante, o que indicia o que já se sabia: que algo de terrível viria a suceder no final. E esse final, ou parte dele, também seria desde logo facultado ao espectador mas apenas parcialmente, acção essa tendente a agir no filme como elemento criador de expectativas.
     
      Diga-se que
«L’Adversaire» não é o primeiro título inspirado nos trágicos acontecimentos protagonizados por Jean-Claude Romand em Janeiro de 1993 e que mais não seriam que o culminar de uma grande mentira quotidiana com dezoito longos anos de duração. «Emploi du Temps», realizado por Laurent Cantet, já tomara a ocorrência fatídica como inspiração de si mas com uma diferença substancial: a inspiração fora exercida de forma muito livre relativamente aos acontecimentos e de molde a praticar um acentuado exercício de reflexão. Este «L’Adversaire» evita a própria reflexão ao largo da história, mas, sendo fiel à obra literária em que se baseia que por sua vez é fiel aos actos ocorridos – o escritor acompanhou mesmo as sessões do tribunal que viria a condenar Romand à pena de prisão perpétua – permite que a sua visão leve à reflexão individual por parte de cada um dos seus espectadores. E esse é um pormenor também ele positivo.
     
      No entanto, na obsessão de evitar julgamentos valorativos sobre quem quer que fosse, a película não alcança um final satisfatório. Aliás, a forma abrupta e pouco clara que o filme encarna no seu final deixa mesmo um sabor amargo de frustração decorrente da ambiguidade alcançada. Esse pormenor, arrisca a que o espectador caia em si e se aperceba que a desolação emocional que o afecta decorre muito mais da consciência que tem de que o que vê teve origem em factos reais e não pelo modo como o filme foi estruturado. O que até nem será totalmente verdade, porque a impressionante espessura dramática que a realização alcança através de silêncios e actos reprimidos, foi preponderante para a atmosfera trágica que é partilhada entre espectador e personagens. E essa perdurará para lá do visionamento do filme. Assim como a incompreensão para com um homem capaz de matar para não olhar a desilusão que a crua e dura verdade provocaria naqueles que o amavam.




     
[Texto em reposição]

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Quotidiano comum

[«O Quotidiano Incomum», foto de Lucie & Simon]





Semana estranha, esta. No Brasil, centenas de pessoas morreram devido à intempérie, na Austrália também o dilúvio causou estragos e destruiu vidas. Por cá, um presidente candidato a presidente cede à pressão e mostra uma faceta irada e pouco condizente com a postura que um cargo de tão alto nível necessita. Entretanto, um poeta esforça-se na prosa com que pretende influenciar o eleitorado e um humanista, médico, luta contra a debilidade de um sistema que se sobrepõe a si mesmo e poucas ou nenhumas oportunidades dá a quem não tenha seguido bem sentado na carreira da política. A abalar o país, no entanto, segue ao leme deste navio mediático o cruel assassinato de um jornalista que se fez à custa de mexericos e de achincalhar a vida alheia e do seu alegado assassino, um jovem modelo que parece ter-se rendido ao desejo de fama e fortuna fáceis aparentemente embrulhado na sua própria confusão quanto às suas orientações sexuais. Felizmente que temos Mourinho a acumular troféus numa demonstração de competência tal que até lhe permite ser quem é ainda que por vezes as suas atitudes choquem os mais sensíveis. Mas, sobretudo, é bom saber que existe vida para além daquela que nos chega de fora ainda que as notícias sejam apenas de dentro. E motivação maior não existe para nos dedicarmos a nós e aos que nos estão próximos já que os outros, os tais, os de sempre, já o eram mas estão agora cada vez mais desinteressantes.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Juha [DVD]

       

      Balada Triste ao Infortúnio
   
      «Juha» foi primeiramente conto, história de gentes do povo gravada no papel. «Juha» foi imaginado, delineado, pela mente do escritor finlandês Juhani Aho no já distante ano de 1912. Em «Juha» narra-se o drama do campesino do mesmo nome, Juha, que tão feliz vivia na sua bucólica e bem tratada quinta com a companheira Marja. Desfia-se igualmente o encontro destes com Shemeikka, indivíduo cosmopolita dando ares aristocráticos, conhecedor da vida e a quem a vida também conhecia bem, e – falando já do filme realizado por Aki Kaurismäki – viajante de cabelos ao vento no seu ágil descapotável vermelho. Mas Juha (Sakari Kuosmanen) é tão delicado nos seus gestos rudes de aldeão agricultor e a sua voz grossa soa tão amável... E Marja (Kati Outinen) move-se com aquela graça que advém da singela genuinidade da mulher para quem o mundo não era muito mais que o marido, a quinta e a praça onde comerciavam a sua produção; mas isso chegava-lhe, o seu olhar brilhava, a sua voz parecia perder-se naqueles campos cultivados melodiosa como o cântico das aves na Primavera. Mas eis que surgiu Shemeikka (André Wilms). Aquela sedutora, maldita e altiva pose, o olhar vivido, a voz insinuante e bem colocada...! Shemeike representa um mundo novo, uma perturbação desconhecida, uma avalanche de novos sentimentos. E torna-se estranho, quase inacreditável mesmo, como um filme mudo e a preto e branco consegue definir dele tanta coisa em nós. Como consegue transmitir a percepção das emoções, a compreensão dos estados de alma mais simples e os mais complexos. E enquanto as personagens vivem o drama nós apreendemos com que sons e com que cores o fazem.
     
      «Juha» é um filme triste. Daquela tristeza que não humedece a vista mas que enregela a alma. Acontece que «Juha» é igualmente um filme muito belo. Em «Juha» pressente-se uma espécie de método cartesiano adaptado ao cinema. Ou seja, nele existe um assumido esquecimento e abalroamento de quanto o cinema evoluiu tecnicamente para que a partir de um novo e primário estado pudesse operar-se a reconstrução deste sem os vícios entretanto adquiridos e ressuscitando em nós um perdido encantamento das histórias contadas na tela grande. «Juha» é também um filme de referências. Referências que vão de Godard a Dovjenko, de Renoir a Buñuel. É o próprio Kaurismäki quem o revela. E porque essas referências são facilmente detectáveis perde importância a outra revelação de Kaurismäki quando confessa gostar muito de mentir. Mas nada disso importa, sequer a mentira a existir. Porque este filme tem um efeito psicologicamente libertador sobre o espectador. Mesmo que nele se trilhem caminhos ligados à mentira e à traição, é de verdade que ele nos fala. De uma verdade cuja restituição vale a morte de um homem. E o filme vale pela sua simplicidade humana extraída da complexidade da trama que lhe dá vida. E há que o referir: se o cinema é a 7ª arte é muito por motivo de filmes como este «Juha» que esse estatuto outrora foi alcançado. Pela sua intemporalidade, pela irrepreensível e absolutamente espantosa direcção de actores. Desde a expressão corporal mais simples até ao rigor com que a identidade social de cada uma das (três) personagens foi defendida. Acrescente-se que a utilização da banda sonora alcança nesta obra uma invulgar sintonia com a acção desenvolvida. Como se fosse a música a ditar os comportamentos e não os comportamentos a sugerirem a escolha dos temas e dos registos. Registos que vão desde a música popular à música clássica sem esquecer a música moderna.
     
      Em suma, «Juha» é um daqueles filmes que muitas vezes procuramos mas quase nunca acreditamos encontrar. É um filme onde ao vê-lo nos deixamos ir como se enlevados na surpresa e pela grandiosidade dos seus ímpetos. Ímpetos de dramatismo, esclareça-se. De tal forma assim é que a páginas tantas sentimo-nos viajar. Sentimos que partimos para um qualquer lugar sem dele pensarmos em voltar. E existe a convicção de que as opções conceptuais em termos visuais e sonoros nunca se configuram numa obsessiva formalidade ou, dito de outra forma, como se alguma vez fossem resultado de um qualquer assomo repentino de pretensiosismo autoral por parte do seu realizador. Antes se adivinha nessas opções uma lógica de amor pelo trabalho artesanal e, aí sim, reconheça-se, um certo desprezo pela industrialização de uma arte. Industrialização do cinema, claro. E «Juha» é uma fantástica experiência de cinema. Socorrendo-me de forma livre da letra de uma música que me diz muito, a quem o assistir “espera-o ondas que persistem, que nunca param de bater, esperam-no homens que resistem... antes de morrer”.*


         * «Capitão Romance», Ornatos Violeta



Semelhanças



 
Miguel Esteves Cardoso? Não, apenas um auto-retrato de Grant Wood, datado de 1932.




segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O dia do juízo final





Na maior parte das religiões acredita-se no dia do juízo final. Talvez esse dia exista mesmo. Afinal vivemos a crédito e no fim alguém nos irá cobrar a dívida que contraímos por cada dia que por cá andámos. E neste aspecto certas religiões funcionam como vulgares seguradoras espalhando a fé no seu deus como quem vende apólices. Acho isto execrável. Mas, pelo sim pelo não, Domingo vou à missa das onze.




domingo, 9 de janeiro de 2011

O Preço da Traição


 



O dinheiro não paga o amor

Catherine [Julianne Moore], ginecologista, mãe, esposa, desconfia que o seu marido, David [Liam Neeson], professor de profissão, a engana com qualquer jovem que se atravessa no seu caminho. Para obter provas irrefutáveis da infidelidade de David, Catherinne contrata Chloe [Amanda Seyfried], uma jovem prostituta de luxo, a quem incube de seduzir o marido. «Chloe», título original do filme do egípcio Atom Egoyan, é o ‘remake’ do francês «Nathalie X» [2003], dirigido por Anne Fontaine.
Num filme com estas premissas, supõe-se desde logo que três elementos se tornem fundamentais e adensem uma narrativa que visa prender o espectador não apenas pela razão mas sobretudo pela emoção: a suspeita, os jogos de sedução e o engano. Nada mau, diria, mas o que, de facto, Egoyan acaba por não conseguir confirmar por inteiro transformando o que deveria ser um ‘thriller’ erótico num drama psicológico. E pese a génese desta história residir na insegurança de uma mulher ao ver aparecerem-lhe na pele as primeiras rugas, o que de melhor o filme oferece acaba por ser o duelo de sedução entre essa mesma mulher [Moore], belíssima, de cinquenta anos, que mantém intactos todos os seus atributos físicos e a beleza voluptuosa de uma outra mulher [Seyfried] no auge da sua juventude e na posse de todos aqueles predicados físicos que enlouquecem os homens. E algumas mulheres.
Assim, «O Preço da Traição» acaba por ser um filme agradável, que se vai apurando em lume brando e se saboreia com menos gosto que aquilo que os olhos prometem. Ainda assim, fica mais uma vez a certeza de que o mundo – e o ser humano – vive à beira de um ataque de nervos, ou, como o filme demonstra, vivemos numa época em que cada vez é mais difícil confiar na sanidade mental de muitos daqueles que nos rodeiam.

«O Preço da Traição», de Atom Egoyan, com Julliane Moore, Liam Neeson e Amanda Seyfried

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Gran Torino






A ausência dói



Em «Gran Torino», esse extraordinário filme de 2008 realizado por Clint Eastwood, a personagem central da trama, Walt Kowalski (protagonizado pelo próprio Eastwood), é um homem só que vê a sua mulher morrer enquanto os seus amigos ou morreram também ou se mudaram para outros locais da cidade. Entretanto, vê o seu bairro habitado na sua esmagadora maioria pelo povo Hmong, uma etnia oriunda do sudeste asiático.

Como grande realizador de cinema que é, em «Gran Torino» Eastwood consegue fazer ainda a ponte entre os conflitos interiores de um homem de alma atormentada e uma sociedade doente. E através de uma realização segura e de uma interpretação verdadeiramente antológica, Eastwood e o seu filme elevam-se a uma categoria superior onde coexistem o drama mais intenso e profundo com cenas de sentido humor.

A nostalgia de outros tempos e um certo impasse vivencial tornam-se elementos fundamentais de uma história onde a expectativa do fim de uma vida já sem grandes estímulos e o apelo da solidariedade se fundem num objectivo comum. E é na consolidação desse  objectivo que o filme de Eastwood se torna perfeito e absolutamente imperdível na história de um homem que encontra a redenção de um modo tão altruísta quanto dramático. E no final do filme talvez sejamos levados a concluir que a perfeição de «Gran Torino» só é possível em contraste com a eterna imperfeição do mundo em que vivemos e naquilo em que o transformámos.

Gran Torino, de e com Clint Eastwood



Prado do Repouso


 
[1892, Edvard Munch]

Amanheceu cinzenta a quinta-feira, dia 6 de Janeiro, no Porto. Do meu quarto de hotel vi a foz, o casario estendido sobre o rio. Comecei o meu dia com a presença num funeral. Os silêncios de respeito pela ocasião triste, os semblantes magoados dos familiares e amigos, a dor da perda mas também as palavras de ocasião. Por que será que mais do que o sofrimento por quem parte me dói observar a ruína emocional em que caem os que os amaram em vida e choram a sua morte?
 

Onde está o cão?

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O Monte dos Vendavais







«O Monte dos Vendavais» foi escrito pela britânica Emily Brontë em 1847 e levado ao cinema por Peter Kosminsky em 1992, como é sabido. A obra relata o conflito de duas gerações das famílias Earnshaw e Linton e o amor avassalador, trágico, entre as personagens Heathcliff (interpretado de forma soberba por Ralph Fiennes no cinema) e Catherinne (uma fascinante Juliette Binoche no filme). Embora levado ao extremo em termos de dramatismo, trata-se de um retrato fiel da vida, de uma aventura arrebatadora, entusiasmante e profundamente reveladora da complexidade do ser humano. As angústias e os medos das personagens são explorados de uma forma perfeita causando no leitor/espectador um efeito tão apaixonante como o ardor que corrói interiormente os dois amantes. E neste âmbito, Heathcliff contribui de forma decisiva para o carácter emocionalmente opressivo de toda a obra. O amor, o ódio e o medo misturados fazem de si alguém que atemoriza mas ao mesmo tempo lança instintivamente um irresistível poder de sedução sobre as mulheres. Um romance clássico e um filme intemporais a pedirem nova leitura e mais um visionamento.





O conselho





É sempre muito arriscado aconselhar um livro ou um filme a alguém cuja forma de estar, pensar e sentir não dominamos. Em tempos uma pessoa com quem não tenho muita afinidade pediu-me que lhe aconselhasse um livro que tivesse sido adaptado ao cinema e também o filme que resultou do livro. Segundo essa pessoa, teria que ser uma história dramática que envolvesse uma relação amorosa. Ainda pensei em aconselhar o «Doutor Jivago», obra maior escrita por Boris Pasternak e levada ao cinema por David Leane. Mas achei que talvez fosse um conselho óbvio de mais e eu próprio acabei por lhe emprestar «O Monte dos Vendavais» saído da genialidade de Emily Brontë e adaptado ao cinema por Peter Kosminsky. Uma manhã, enquanto desenferrujava as pernas numa curta corrida junto a minha casa, essa pessoa veio ter comigo com o livro e o DVD nas mãos. Fiquei um pouco receoso de ter causado alguma decepção com o meu conselho. Mas não. Depois de me ter colocado nas mãos as duas obras, percebi não só pelo que me foi dito como pelo sentimento expresso nessas palavras que Emily Brontë e Peter Kosminsky tinham causado um efeito emocionalmente devastador na minha interlocutora.






quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A verdade da mentira


[Girl in a Poppy Field, 1974 - Peter Blake]



M., onze anos de idade, um sorriso feliz desenhado num rosto de menina. Olha-me atentamente, fixa o seu olhar em mim, investiga para lá do que vê e faz a pergunta incómoda: ‘já alguma vez mentiste?’ Fiquei sem pinga de sangue, hesitei. Mas não, se já alguma vez mentira não era aquela a altura para repetir o meu constrangedor delito. Respondi-lhe com o meu melhor sorriso em tão difíceis circunstâncias. ‘Já, já menti.’ Ela não acreditou e riu-se com vontade voltando para o seu mundo povoado de inocência. Percebi então que lhe dissera a verdade parecendo que mentia. Senti-me duplamente mal.


 

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Os Sonhadores


[Eva Green, de virgem abundante a Bond Girl]




A Arte de Expor a Paixão

A filmar a grandeza dramática, inebriante e de um erotismo quase obsessivo mas nunca gratuito do amor, o nome do cineasta italiano Bernardo Bertolucci dispensa apresentações. «O Último Tango em Paris», «Beleza Roubada», entre outros, são exemplos de filmes onde o gosto pelo amor e suas cambiantes de desvario, exaltação dos corpos e das almas que exultam através da união da carne ganha um relevo especial. Este «Os Sonhadores» é apenas (cuidado com este «apenas») mais um radiante exemplo do carácter afectivo – designemo-lo assim – do cinema de Bertolucci.

Paris é a cidade do amor, do sonho, da cultura, das elites intelectuais, da agitação e da revolta. E também do Maio de 68 e da Cinemateca Francesa, para nos situarmos definitivamente em «The Dreamers», no seu título original. É também a cidade de Theo e Isabelle, dois irmãos tão loucos no dia-a-dia quanto o são pela 7ª arte, e de Matthew, um jovem estudante americano a estudar na cidade das luzes e também ele um cinéfilo compulsivo.

Entre os três jovens nasce uma ligação que chega a assumir contornos de absoluto delírio não apenas na relação quase siamesa dos dois gémeos como pelo amor que nasce entre o elemento feminino do par e Matthew. Neste ambiente de cultura, de enfurecimento intelectual e desregramento ganha protagonismo o ardor da paixão entre o jovem americano e a sedutora francesa cujos contornos Bertolluci não se coíbe de expor no ecrã. Para aqueles que se sintam constrangidos pela visão de um pénis momentos antes da penetração inaugural numa vagina que sangra e palpita, este talvez seja um filme desaconselhável. Para quem entenda estes como factores naturais da vida, que não devem ser escondidos mas também não servem para um redutor papel de simplesmente provocar ou estimular, «Os Sonhadores» acaba por ser uma revisitação da Paris onde se deu «O Último Tango (...)» mas sem que exista ligação palpável entre ambos.

De salientar o ano de produção do filme (2003) e a aparição da virgem Eva Green que anos mais tarde conheceríamos como Bond Girl (a contracenar com Daniel Craig). No restante elenco Michael Pitt, um estudante americano em Paris, e Louis Garrel, o irmão siamês, estão à altura de um filme onde o Maio de 68 serve apenas como pano de fundo para as fantasias eróticas de Bernardo Bertolucci. O truque reside na capacidade que este tem em transformá-las em bom cinema. Mas atenção, há por aí muito boa e intelectualmente bem cotada gente a achar o filme insuportável. Eu cá não, gostei. Deveras.




«The Dreamers», de Bernardo Bertolucci, com Michael Pitt, Eva Green e Louis Garrel

Gaivota

[Lisboa]


Lisboa




[Gaivota] 






Lisboa. Uma voz linda de mulher ouve-se ao longe enquanto canta rogando que uma gaivota lhe traga o céu de Lisboa. E Lisboa está ali, está aqui, está lá, permanece um coração perfeito no desenho que fazemos da cidade grande e cosmopolita que é. Nas suas ruas antigas, menos antigas, modernas, mais modernas, os olhares entrecruzam-se saltando de laje em laje, saltitando algures nas lajes feridas pelo passar do tempo. E também eu vou perscrutando aqui e além pelo interior da penumbra, pela noite que se aproxima.

Mas Lisboa não esmorece nem cai no mar como canta a voz feminina. Permanece, isso sim, soberba nas suas avenidas, nas praças de sempre pisadas pelos pés velozes dos vendedores de bugigangas que interpelam os turistas. Que lhes sorriem, que lhes falam enquanto aqueles lhes põem uma mão sobre o ombro, lhes suplicam, imploram. Nas igrejas as vendedoras. À porta, numa dessas igrejas antigas, tão antigas como as ruas, as praças, a vendedora sem pernas oferece aos crentes ou somente curiosos os seus ramos de flores viçosas. Violetas, são violetas, quase grita.

Paguei o café e ausentei-me da esplanada, deixei a mesa vazia, a chávena branca vazia, o guardanapo gasto, as cadeiras desalinhadas, o rasto dos meus lábios na chávena branca, o casal ao lado de mãos dadas, as mãos dadas num aperto caloroso, o homem de ar aristocrático que folheava o jornal fingindo ler as notícias, os seus olhos perdidos na beleza e na juventude das mulheres em reboliço, rua acima, rua abaixo. Lá fica também o empregado de laço negro ao pescoço. E Pessoa, Pessoa o poeta da cidade, Pessoa impávido e sereno na sua representação em ferro, em bronze, não sei bem.

Desci a Rua Garrett em direcção à Rua do Carmo e a mulher mantém-se a cantar. E não, também eu não sei, nunca soube aliás, porque tem Lisboa este tom magoado, porque nela cantam o fado sob o céu como numa asa que não voa. Voz de homem, sumida, lamentosa, responde-lhe ainda a cantar. Diz-lhe que é Lisboa, que Lisboa vive num rosário de penas onde reina a saudade. E chegado já ao Rossio, fico sem saber o que fazer num caso como o que está a acontecer, como o meu, como o teu, como o dela. Ela Lisboa.  E como o homem que canta a chorar baixinho, talvez não me reste mais que pedir aos céus, a mim, a ti e a Deus. Mas não, não foi Deus. Fomos nós homens, foram vocês mulheres, és tu mulher linda, tu que és a saudade, o brilho no olhar. E embrenhei-me na cidade por entre caras conhecidas, desconhecidas, ruas, praças, avenidas, umas modernas e outras antigas. Por Lisboa.





segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O nosso mundo

[Foto de Bill Brandt]



A crise financeira deitou a economia no divã e esta teima em não sair do coma profundo em que mergulhou. A depressão atingiu primeiramente a América mas rapidamente se alastrou pelo mundo fora e Portugal, como pátria do fado, não escapou à triste sina. Os bancos, habituados a pagar fortunas vergonhosas aos seus altos quadros e, numa ironia cruel, a viverem acima das suas possibilidades, deixaram de ter dinheiro para fomentar as linhas de crédito com que engenhosamente as empresas iam mascarando os problemas de anos e anos de péssimas gestões. Os discursos endureceram, gerou-se o medo e antes de debelar a recessão económica o mundo vai ter que curar a fraqueza psicológica de que padece e que o impede de reagir. E às vezes é preciso tão pouco para encontrar uma saída para a clausura onde nos encontramos. Eu sei que é duro dizê-lo, lê-lo, até pensá-lo, mas enquanto não é dado o passo para que esse pouco se concretize os sentimentos que mais transparecem são de amargura, decepção, incompetência e muita incerteza. E o mundo ameaça tornar-se num lugar triste para se viver.

 
Feliz 2011.